Opacidade do mundo

É tão bom começar a manhã com tudo o que
queremos ser neste dia, olhar sem medo pela
janela, ensaiar uns passos fora da pele.
Já não somos nós, nem mesmo é nosso o dia.
Tropeçamos nos olhos espantados à volta
do que vemos, precipitamo-nos para dentro e é tudo
o pouco que fizemos. Dizemos que a pele
é a nossa casa, enumeramos as assoalhadas,
a arquitectura sólida, as vantagens de grades
nas janelas. Depois fica-se triste até ao fim do dia.
Há quem faça compras ou coma chocolate,
quem diga mal de todos, quem não acorde a espreitar

Obra-Prima

Quando a tua mão acaricia a minha perna
os sensores da pele desencadeiam reacções sentimentais
e às vezes chego a ter uma reacção motora. O ângulo
da perna, a inclinação do pé - maravilhas-te com a paisagem
ocasional: depois da curva da estrada estabilizas o olhar
na curva do joelho. Os olhos impacientam-se em sacudidelas
invisíveis mas o espelho reflecte apenas imobilidade.
A sandália: o teu olhar vai do joelho à nudez do pé. Este pé
que calcorreia as ruas é também objecto de desejo: o pé

O segredo da matéria

Subo ao sótão e tenho seis anos
pelas escadas que rangem
sob os pés que voam em segredo/
rangem como a porta a abrir
para a luz filtrada dos pavores da infância
onde espero um pouco
por tudo o que me espera desde a eternidade.
Tenho sete anos e a cinza confunde-se com a luz
depositada no tempo. As arcas dão a ver o outro lado
do mundo espalhado pelo chão à minha volta.
Não são objectos mas o próprio mistério da existência
que vai passando pelas minhas mãos
quando tenho oito anos quando tenho agora

O rosto da matéria

Parece simples
a simplicidade que vem das coisas
e nos encontra a meio do caminho
entre o que não fizemos
e o que não faremos.
Também elas percorrem os círculos
do poço em que se afundam
a boca negra de onde sai a tinta
e espalha a luz do dia
igual à luz da noite.
Tratam-se por tu as coisas
e esta intimidade
flutua no ar do papel
onde crianças voam com as cores
de um papagaio /
pois não é assim que o vento faz o vento
desde todo o sempre?
Sempre as crianças brincaram com a chuva

O ranger do tempo

As tuas mãos laboriosas desenham no solo
o trabalho da noite
agora que o tempo esvaziou o corpo
que projecta sombra.
Agora é a minha sombra que projectas
onde quer que estejas ou não estejas.
Talvez na casa, no degrau que range
a farejar-te o peso no meu corpo
que agasalhas
como quando adormecia no teu colo.
A noite era apenas uma ideia,
real era o girar do mundo no pátio
era a luta dos cães,
o chão com milho, merda, restos de comida,
e aparas de madeira ainda suadas.

O pecado da gula

Ontem à tarde saí.
Queria passear as lembranças
que um dia de chuva faz crescer em nós.
Há dias que o vento rondava a casa
cheio de segredos incompletos
a roçar-me a orelha. E eu não resisto
ao sabor do vento
e a uma boa história para enganar o frio.

Natureza morta com chaminé

Vejo o fumo a sair pela chaminé e um pouco acima
as folhas da árvore tremulam. Ainda resistem,
as árvores têm um fôlego extraordinário. É o meu amigo
que vai subindo e eu aqui em baixo troco recordações avulsas
com dois rapazes do nosso tempo. Lá dentro há uma sala de espera
mas aqui também eu vou fumando a minha vida.
Em Auschwitz não havia sala de espera não havia cadeiras
para a família, nem árvores suficientes para soletrar a dor
nas suas folhas. O meu amigo vai saindo pela chaminé

Mensagem silenciosa

Os sentidos reúnem-se à mesa do jantar,
as vozes misturam-se com os cheiros
da terra,
com o gosto do amor em cada prato;
os dedos cruzam-se no pão que inventamos
verso a verso,
no olhar a palavra da mãe que se levanta
e eu atrás
com o laço de verão no vestido
que se desaperta.
A mão da mãe enlaça os sentidos,
dá um nó, o amor preso à toalha
da mesa - não penses,
nunca penses no laço que se abre,

no corpo que se fecha,
nas migalhas dispersas pelo chão:
deixa só o vestido voar
em redor do tempo.

Inclusive às terças

A casa de Sibelius encerra às Terças-feiras
Em Tuusula, na paisagem de bétulas
só agitada pelo vento, sobre as águas serenas
do lago Tuusula e do pequeno ruído dos insectos
e dos peixes que não vêm à superfície
Sibelius compunha apaixonadamente
inclusive às Terças. Também nós ouvimos Sibelius
a qualquer dia da semana e vendem CDs
mesmo aos Domingos. Às vezes componho palavras
enquanto oiço Sibelius. É apenas o fundo hábil
em que me movo, o fundo do lago Tuusula. À superfície
vêm os despojos da poesia, junto com os passos

Este lado do tempo

Não saí da infância
das suas vozes agarradas ao coração da pele
do tempo que se esquece do tempo
onde brota uma fonte que está ainda
a começar.

Não comas nunca sem fome
nem o fruto imaginário que cresce
quando se vê daqui.
Nunca sacies, nunca desejes
nunca tenhas fome.
Basta uma sede de lavar as mãos
de multiplicar a água que lavra a terra
que atravessa todas as memórias
que pudesses ter
para que tenhas
um pouco de luz e apenas a sua sombra.

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