Este lado do tempo

Não saí da infância
das suas vozes agarradas ao coração da pele
do tempo que se esquece do tempo
onde brota uma fonte que está ainda
a começar.

Não comas nunca sem fome
nem o fruto imaginário que cresce
quando se vê daqui.
Nunca sacies, nunca desejes
nunca tenhas fome.
Basta uma sede de lavar as mãos
de multiplicar a água que lavra a terra
que atravessa todas as memórias
que pudesses ter
para que tenhas
um pouco de luz e apenas a sua sombra.

Dia de aniversário

ao Hugo

Desmantelar certezas

Agora é difícil mentir, acreditar
que as palavras possam não arder.
Foram demasiados incêndios
que passaram de século a século.
Vê como se assemelham os seus rostos,
o rasto de fuligem que os desfigura
é um cometa fugidio, mas nós sabemos
que algumas palavras passaram através do fogo,
mais magras do que os corpos, mais dúplices,
cheias de sentidos cobrindo mil cores
e mais mil ainda por abrir. Quantas vezes
a serva escolheu a quem servir?
E no chão sempre o mesmo sangue,
sempre os mesmos olhos a desmantelar

Clarabóias de verão

Depois de brincar no teu jardim
subia as escadas e esgueirava-me para o sótão.
A porta abria e eu ficava na soleira
a ver o vento nos moinhos
e a luz desatinando as velas.
Depois avançava através dos lençóis estendidos
com a espada do pau de uma cadeira.
O doce fru-fru do vento ondulava
nos lençóis e figuras de sol projectavam no ecrã
guerras secretas que logo as empregadas delatavam.
Um castigo de criança era a vil vergonha
para tão gloriosos feitos. Deitada na cama antes
da hora escutava ainda a melodia chegando

Atrás dos dias

ao Hugo

An(á)fora

As coisas vêm do futuro para se perderem
na sombra.
No breve momento de que são feitas
podem ser invocadas
«estas», «as coisas», «aqui»
mas a nossa voz pertence sempre ao passado

Eis porque toda a coisa
espera de nós uma crença total no tempo,
uma continuidade trémula que permita dizer as horas
a quem passa
como se estivéssemos a ocultar a ignorância
que de si mesma fala no poema
acreditando que é possível regressar
antes das coisas que gastámos sem sequer as ver

A ventura marítima

É à noite que as traineiras descem o rio,
o ruído do motor não abafa o marulhar da água,
parecem pirilampos com nomes de mulher:
Rosinha, Salette, Princesa dos Mares,
deslizam por entre esgotos, sacos
e garrafas de plástico, a aventura marítima
está povoada com novos artefactos. É preciso
sacudir o petróleo do peixe, escová-lo, desligar
o interruptor para que o mercúrio se torne invisível
e as peixeiras mostrem as guelras do saudável
cherne de boa linhagem. Já nada é o que era

A divisibilidade dos aromas

A divisibilidade dos aromas

Pela janela vem o cheiro da manhã, da relva
e das rosas salpicadas de fresco que se casam com o cheiro
dos lençóis sonolentos. Ao bater a porta já só sinto
o meu perfume, o que pomos por cima das certezas
e das dúvidas, por cima dos segredos que trespassam a pele.
Em breve me confundirei com o cheiro dos outros, daquele homem
vergado pelo saco de batatas, da florista a compor as margaridas,
da peixeira à porta da vizinha mostrando as goelas sangrentas
(talvez porque se tenha levantado cedo e apregoar assim

A irreversibilidade do tempo

Não te importes amor
se tivermos a alma em desalinho.
Amanhã cortaremos as sombras do quintal
sem acreditar que as sombras devam ser
sombrias. Mas é reconfortante acreditar na língua
e na sabedoria popular
e em tudo o que nos torna cúmplices.

VROMANS Marie-Claire

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