A ventura marítima

É à noite que as traineiras descem o rio,
o ruído do motor não abafa o marulhar da água,
parecem pirilampos com nomes de mulher:
Rosinha, Salette, Princesa dos Mares,
deslizam por entre esgotos, sacos
e garrafas de plástico, a aventura marítima
está povoada com novos artefactos. É preciso
sacudir o petróleo do peixe, escová-lo, desligar
o interruptor para que o mercúrio se torne invisível
e as peixeiras mostrem as guelras do saudável
cherne de boa linhagem. Já nada é o que era
e eu creio que nunca foi. Que romântico é olhar o rio,
a procissão das traineiras, Cristo crucificado e a mãe
chorando. É sexta-feira de paixão, fim-de-semana,
a foz enche-se de carros, pessoas acotoveladas
nos bares da praia. Ao fim da noite virá o pálio
e um halo de santidade descerá aos peixes,
à sardinha, à pescada, ao robalo,
que rezem por nós, agora que estão iluminados a petróleo
e que o mercúrio brilha no coração dos eleitos.

In Da Alma e dos Espíritos Animais (2001)