Por um dia de inverno

O homem do talho morreu. Deixou mulher,
dois filhos e carne fresca estendida como roupa
no varal. Lembro-me do orgulho com que passava a mão
pelo cachaço. Lembro-me da peixeira
que nos acordava de manhã «peixe fresco
tão vivinho» e como era caro o estertor do linguado.
Mesmo as alfaces são frescas depois de mortas,
o molho de nabiças, até de uma cenoura esperamos
que seja fresca ali no prato com o linguado rigorosamente
apartado das espinhas. Tão fresco! O homem do talho
vai a enterrar depois do almoço. Agora jaz na capela mortuária

Pedras rubras

ao Hugo

Cinco horas p.m. eu ia na estrada para o Porto
e enquanto as tuas asas subiam
as minhas tinham ficado sob as pedras logo a seguir
ao check in. Sabes como é o campo
depois de tanta chuva? O campo que corre
a cem quilómetros por hora enquanto acima das nuvens
tu planas como se não houvesse leis? Hoje sinto
no corpo a lei da gravidade, a ditadura do peso.

Os passos sem mémória

Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom-dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura

Opacidade do mundo

É tão bom começar a manhã com tudo o que
queremos ser neste dia, olhar sem medo pela
janela, ensaiar uns passos fora da pele.
Já não somos nós, nem mesmo é nosso o dia.
Tropeçamos nos olhos espantados à volta
do que vemos, precipitamo-nos para dentro e é tudo
o pouco que fizemos. Dizemos que a pele
é a nossa casa, enumeramos as assoalhadas,
a arquitectura sólida, as vantagens de grades
nas janelas. Depois fica-se triste até ao fim do dia.
Há quem faça compras ou coma chocolate,
quem diga mal de todos, quem não acorde a espreitar

Obra-Prima

Quando a tua mão acaricia a minha perna
os sensores da pele desencadeiam reacções sentimentais
e às vezes chego a ter uma reacção motora. O ângulo
da perna, a inclinação do pé - maravilhas-te com a paisagem
ocasional: depois da curva da estrada estabilizas o olhar
na curva do joelho. Os olhos impacientam-se em sacudidelas
invisíveis mas o espelho reflecte apenas imobilidade.
A sandália: o teu olhar vai do joelho à nudez do pé. Este pé
que calcorreia as ruas é também objecto de desejo: o pé

O segredo da matéria

Subo ao sótão e tenho seis anos
pelas escadas que rangem
sob os pés que voam em segredo/
rangem como a porta a abrir
para a luz filtrada dos pavores da infância
onde espero um pouco
por tudo o que me espera desde a eternidade.
Tenho sete anos e a cinza confunde-se com a luz
depositada no tempo. As arcas dão a ver o outro lado
do mundo espalhado pelo chão à minha volta.
Não são objectos mas o próprio mistério da existência
que vai passando pelas minhas mãos
quando tenho oito anos quando tenho agora

O rosto da matéria

Parece simples
a simplicidade que vem das coisas
e nos encontra a meio do caminho
entre o que não fizemos
e o que não faremos.
Também elas percorrem os círculos
do poço em que se afundam
a boca negra de onde sai a tinta
e espalha a luz do dia
igual à luz da noite.
Tratam-se por tu as coisas
e esta intimidade
flutua no ar do papel
onde crianças voam com as cores
de um papagaio /
pois não é assim que o vento faz o vento
desde todo o sempre?
Sempre as crianças brincaram com a chuva

O ranger do tempo

As tuas mãos laboriosas desenham no solo
o trabalho da noite
agora que o tempo esvaziou o corpo
que projecta sombra.
Agora é a minha sombra que projectas
onde quer que estejas ou não estejas.
Talvez na casa, no degrau que range
a farejar-te o peso no meu corpo
que agasalhas
como quando adormecia no teu colo.
A noite era apenas uma ideia,
real era o girar do mundo no pátio
era a luta dos cães,
o chão com milho, merda, restos de comida,
e aparas de madeira ainda suadas.

O pecado da gula

Ontem à tarde saí.
Queria passear as lembranças
que um dia de chuva faz crescer em nós.
Há dias que o vento rondava a casa
cheio de segredos incompletos
a roçar-me a orelha. E eu não resisto
ao sabor do vento
e a uma boa história para enganar o frio.

Natureza morta com chaminé

Vejo o fumo a sair pela chaminé e um pouco acima
as folhas da árvore tremulam. Ainda resistem,
as árvores têm um fôlego extraordinário. É o meu amigo
que vai subindo e eu aqui em baixo troco recordações avulsas
com dois rapazes do nosso tempo. Lá dentro há uma sala de espera
mas aqui também eu vou fumando a minha vida.
Em Auschwitz não havia sala de espera não havia cadeiras
para a família, nem árvores suficientes para soletrar a dor
nas suas folhas. O meu amigo vai saindo pela chaminé

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