O ranger do tempo

As tuas mãos laboriosas desenham no solo
o trabalho da noite
agora que o tempo esvaziou o corpo
que projecta sombra.
Agora é a minha sombra que projectas
onde quer que estejas ou não estejas.
Talvez na casa, no degrau que range
a farejar-te o peso no meu corpo
que agasalhas
como quando adormecia no teu colo.
A noite era apenas uma ideia,
real era o girar do mundo no pátio
era a luta dos cães,
o chão com milho, merda, restos de comida,
e aparas de madeira ainda suadas.
Posso ver o pátio entrar no corpo da criança
com o bulício das gentes
e a tua voz impregnando as coisas
que guardam intacta a luz
a luz doce que recolho para entrar na sombra
onde mãos laboriosas tecem
a ruga mais funda do poema.