Dia de aniversário
Puesia
ao Hugo
Sempre que te escrevo aparecem fusos entre nós:
11 da manhã em Isla Negra e duas da tarde
no teu quarto. Na casa de Neruda mesmo as figuras de ré
olham o mar. Coleccionáveis, como as que se vendem
numa barraca cá fora, de vários tamanhos e preços.
Escrevo-te para qualquer lugar que nunca sei onde fica.
Cão de caça, procuro os teus vestígios por aí:
entre as roupas que faltam busco as que te agasalham,
cheiro a louça que sujaste, procuro a ciência da tua natureza
espalhada pela casa. A casa de Neruda em Isla Negra
é transparente: posso segui-la ao longo da costa, da voz do guia,
essa voz absurda que podias ter ouvido três horas antes
se não houvesse fusos entre nós. Talvez o poeta
se tenha picado num fuso e o exílio fosse apenas a cegueira
dos outros. Imponentes as figuras inclinadas miram longe,
para lá do vidro. A mais bela olha a campa de Neruda
por entre a multidão de visitantes que exigem uma fotografia
com ele. Instantâneos: vão e outros vêm ser fotografados.
A terra é fotogénica e está sempre à mão. Agora já é tarde
em Isla Negra e demasiado cedo no teu quarto.
Talvez o amor seja uma figura de proa desafiando o barco
por entre o alvoroço das águas. Está virada para ti
que nunca sei onde estás e és o meu norte.
In Da Alma e dos Espíritos Animais (2001)