Soletrar o dia

Sarà l’azzione cumuna da parechji anni, sarà a custruzzione di i prugrami à vene, sarà l’amicizia, o tuttu à tempu…

 


 

Passos sem memoria

Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã
cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras para
adormecer.
A esta hora a minha avó enrolava o rosário nas mãos.
Eu estava dentro das contas, dentro do sono que
rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.

Inventar a pele

Então era outra vez. A mão na maçaneta
que faz girar o tempo. Éramos invisíveis
no meio da gente. Tudo era secreto, cúmplice
de nós subindo devagar. Saborear a elevação
do corpo, o ruído da madeira, a porta à espera
e o depois da porta. O outono vem depressa.
Guardar o verão, restos de sol no cimo
do escadote. Foi feliz o vestido estampado.
Havia um vento leve, a tua pele tocava a minha,
o mar passava pelos pés e ia. Sentir o teu corpo
como não ter vestido. Desço as camisolas,
a tua mão interior a inventar a pele.
Ela está ao sol com um colar que desce até ao peito.
Direita como se não doesse o tempo. Ela estará
depois de nós, e envelheceremos nas contas do colar.

Ser e parecer

A geometria não é uma ciência exacta.
A casa sem cimento. Os ângulos menos rectos,
mais redondos. Tudo o que sou vem de dentro
do amor e faz perguntas: como dizer uma só palavra
sem a tua boca? Trago nas mãos coisas de ir
e vir. Trago o movimento das pernas. A palavra
solta as mãos, pede que a soletres em vogais
ao meu ouvido. Lá fora os cães descalços
e uma nuvem passageira. Pessoas vistas de longe.
Também elas devem ter perguntas. Se lhes gritasse:
“o amor entranha-se na mais pequena porção do
espaço”
saberiam que falo do meu corpo? Que o meu corpo
faz chamadas para a outra margem da noite?
Pareceria apenas uma mulher ao telefone?

O sorriso das pernas

Vieste sem perguntas, como quem caminha
pela estrada e não pára à entrada da casa.
Cortaste-me o pão aos pedacinhos, fizeste o ninho
na almofada onde o meu sono dorme
com as histórias que desdobras no lençol.
Dei cor aos nomes com as letras devastadas,
comi a fruta com os teus dedos, deitei-me
entre o polegar e teu médio, entre os duendes
da clareira que abriste para o dia. Cantaste a minha dor
e dela fiz a manta que nos cobre. Voltei a ser
o sorriso das pernas, o sopro na voz que chega
onde estiveres. Agora que não há perto
ou longe, ou coisa que faça mal, que tudo se toca
por dentro do devir, deixo um nenúfar à porta
para quem chegue com o fardo da noite. E faz-se luz
com as pétalas abertas do teu nome.

Entre ontem e a tua boca

Vou passar a noite com estes dias.
Com o sorriso que deixaste nos lençóis.
Ainda ardo com os restos do teu nome
e vejo com o teus olhos as coisas que tocaste.
Estou entre o pão e a mesa, no copo
que levas à boca. Na boca que me guarda.
E não sei o que sou entre ontem e o que vier.
Ontem era o rio ao entardecer, o olhar que acaricia a
luz.
O meu filho escreve nos seixos da praia e eu invento
passos para os decifrar. Todos rolam para longe.
É assim o mar. Vou aprendendo com as ondas
a desfazer-me em espuma. Há sempre uma gaivota
que grita quando estou perto, sempre uma asa
entre o céu e o chão da casa. Mas nada me pertence,
nem as palavras com que cimento as horas.
Talvez o amor seja uma pequena diferença entre fusos
horários ou o acordo ortográfico que só existe
no fundo da pele. Mas aqui onde não sou
o que me funda é a certeza de que existes.

Vamos pelos dias
a Hugo Branco

De novo Novembro e os fusos
continuam entre nós. Mas estes
não picam e só adormecemos quando
o sono vem. Docemente, como a erva
cresce e as gaivotas soletram o amor.
Agora sentamos a distância à mesa.
É o conviva da festa diária e com ela
vamos pelos dias e todas as coisas nos tocam
onde quer que estejam ou não estejam.
Aprendemos juntos o pequeno e o infinito,
aprendo contigo a caminhar pela praia
onde algures deixaste umas sandálias,
aprendo a flutuar entre as paredes da casa,
a perder as pedras que me indicam o caminho.
Estão vazias as pegadas que deixei.
Por isso o amor nos encontra a cada passo,
imperfeito como ao amor convém.

Saliência e pregnância

Guardo a camisola no armário.
Guardo o passado para o futuro,
a membrana que separa o interior
do exterior. O que fica sob a camisola
é todo o corpo de que aquece parte.
As tuas mãos são o avesso e a frente.
Mãos simétricas. Dentro da camisola
nasce o calor e o movimento
e percebo que guardar a roupa implica
a física e a geometria, mas não há ciência
para este amor dobrado pela camisola.
Deixo as tuas mãos inteiras para que saiam
do armário sem esperar pelo futuro.
É melhor ter crenças do que acreditar na Ciência.
As tuas mãos acariciam-me longe da gaveta,
mas propagam a causa para o efeito.
Em boa verdade nem guardei a camisola
no armário. Só a tricotámos no poema.

A última consoante
a Jacques Thiers

Como se tivesse voltado à infância onde tudo coincide
para escapar à verdade. Mais estreita a verdade
do que a estrada de ravina. A tua voz acaricia-me
as vogais no cimo, sobre Bastia, a montanha e o mar
são a mesma coisa, as casas salgadas, algas à porta
e um cão rebolando-se na areia. O perfume da erva,
dos aromas que abres com a tua chave. Talvez usasses
calções
e tivesses os bolsos cheios de nada quando a tua voz
só sabia dizer sim. Como nesse dia, acreditas que
“Pacà, pacarà ella!”
e tiras do bolso o gesto majestático de uma miúda
de dez anos. Foi aqui que o meu corpo se desembaraçou
da última consoante. Mais tarde, quando entrei no
oratório
de Santa Croce, um cristo olhou-me sereno e sem
sofrimento
e compreendi que não precisou de morrer para nos
salvar.

Invaçao do olhar

Não digas que eu não estava à janela,
que não foi para ti o que não viste.
Há tanta coisa que não sabes, não digas.
Um dia ver-me-ás à janela de ontem
com a roupa que hei-de vestir amanhã.
Até lá pensa que me sonhaste. Nem eu mesma sei
o que fiz nesse dia. Mas a janela guarda os meus dedos
como tu me guardas. O tempo é uma invenção recente.
Era uma vez essa mulher que viste. Retira o vidro,
a moldura, e não te esqueças de abrir o horizonte.

A palmeira de Kairouan
a Moncef Ouhaibi

Soletro Kairouan nesta casa vazia
sem arcos de passagem onde abrigar
a tua ausência. Soletro cada pedaço de céu
nas tuas portas, na poeira das ruas que se eleva
para tecer as nuvens com a lã dos tapetes.
Hora da prece. Oiço a tua voz nas margens de
Kairouan,
os joelhos colados ao chão vistos de fora. Vou
desenhando
círculos à volta do poço. Sísifo trabalha a minha água,
o eterno retorno a Kairouan. Quem te fez azul:
porta, janela, arcada, passeio simétrico do branco?
Quem fez de Kairouan o céu do meio dia? E contudo
terra
onde um alfaiate cose a noite junto à porta. Contudo
todas as cores e os gatos vasculhando o lixo. Latas,
e pequenas caixas nas prateleiras junto à coca-cola.
Bato à tua porta para que a casa se recolha
antes de me acolher. Camas onde nos sentamos
para beber o segredo do vinho enquanto as nossas mãos
se encontram num só prato. Molhamos o pão e a boca
entre o “ka” e o “da” dos palradores da noite e é com
palavras
que embalamos a Medina deserta a esta hora.
E cada dia o céu se faz madeira de porta,
cimento de molduras e as sete curvas da ruela
que os guias impingem aos turistas antes dos dinares.
Marabout, deixa-me soletrar o nome do teu santo.
Mesquita, deixa-me ficar nos arredores do nada
onde tem morado a Palestina e diz-me quanta poeira
terei de comer, quanto azul verter para que tenhas casa.
E digo eu que a minha casa está vazia, a mesa apenas
mesa
e o prato irrepartido. Que o céu e o mar se não fazem
corpo
no corpo da cidade. Que há uma explicação
para as nuvens que não é a poeira dos meus passos.
Mas o azul é vermelho na tua língua onde a palavra
nem sequer é casa. As grades ardem dentro das janelas,
dentro dos pulmões irrespiráveis que te sofrem.
Palestina,
os meus pés hão-de soletrar o teu solo como a minha
boca
soletra Kairouan, o corpo do céu nas tuas casas.
Afasto-me
como o gato que desliza sobre o muro, o avião que me
traz
de volta na cadeira vaga. Diz que me vês atravessar o
Souk,
bater à minha porta na Medina, diz que sou o teu azul
na terra
quando adormecemos no poço mais fundo de Kairouan
onde se espelha o céu nas nossas asas. Kairouan une os
dois lados
do meu coração como uma palmeira hermafrodita.

A tua pele descalça

Veio uma onda. A varrer o meu sono.
Caminhava nele como caminho na areia.
Nada me une ou divide. Nada me retém.
Sentas-te onde me sento no teu colo
e peço sempre a mesma história. A tua voz
cria as memórias que hei-de ter. Por agora
caminho ao longo das gaivotas e grito como elas
quando a maré baixa. Às vezes apoio-me num rochedo
para dizer “casa” e logo desmorono. Sigo descalça
como tu para dizer “seguimos”. Mas são apenas sons
sob o sol de maio. Murmúrios do que não serei.
Sempre tive problemas com o verbo ser. Faço
e desfaço as malas, entro e saio das gavetas.
Pausa na camisa que vestiste da última vez.
Uma vontade de a amarrotar, desapertar os botões
e sentir lá dentro a tua pele cá fora.
Tudo isto é tão verdade como podem ser os botões
de uma camisa escrita. Confesso que não pensei na cor,
ou se era às riscas. Agora acho que podia ser a de
quadrados.
Em qualquer delas a tua pele entra na minha.

Gravitação universal

De novo o mar que espero
sentada à janela que dá para as rosas.
Que dá para todas as ruas que passei
com os teus passos. Para a estrada
onde virámos a cabeça para não ver
o homem esvaído no chão.
Depois comemos na casa de um amigo,
bebemos e falámos como se a vida fosse eterna.
À volta a estrada estava limpa, sem sinais
de sangue. As luzes sobre o mar nas duas margens
e a tua mão na minha perna. Lá no céu
um homem esventrado procura as suas asas.
Nada sei de anjos. Eu que espero o mar todos os dias
acredito na rotação da terra e na lei da gravidade.
Mas quando chegas o corpo não tem peso
e as palavras voam em redor de nós
alagadas em suor. E vem o mar.

Juízo final

Ponho na mesa alguns frutos
e a pobreza em redor.
Um luxo de nada: o desperdício que infligimos
aos outros por baixo da mesa.
Algumas migalhas para os animais
que já não são. São como restos presos à toalha.
Outras migalhas atravessam
o continente. A boca à espera do que
nem chega a chegar. A mão estendida
do outro lado. As paredes do estômago
que se colam ao chão. Um rosto estatelado
teima nos ecrãs. Muda-se de canal.
Dois jovens riem e bebem coca-cola.
Podemos dormir o sono dos justos.

Soletrar o dia
a Stephan Reckert

Tenho tudo por dizer e gasto palavras
para lá chegar. Não sei se me afasto
ou se chego perto. Se alguma vez rocei
a pele do essencial. E pergunto sempre
para quê estas linhas que me teimam.
O passado não é o que está feito,
mas o que palavra alguma fará de novo.
Por isso leio sempre no futuro, mas não sei
para que lado do tempo escrevo. E se soubesse
que arrasto as letras como um caranguejo
diria que só tenho esta mão de palavras.
Soletro os dias em cada coisa que me olha
quando me sinto a vê-la. É tudo.
E não há desculpas para o que faço.