A palmeira de Kairouan

Soletro Kairouan nesta casa vazia
sem arcos de passagem onde abrigar
a tua ausência. Soletro cada pedaço de céu
nas tuas portas, na poeira das ruas que se eleva
para tecer as nuvens com a lã dos tapetes.
Hora da prece. Oiço a tua voz nas margens de Kairouan,
os joelhos colados ao chão vistos de fora. Vou desenhando
círculos à volta do poço. Sísifo trabalha a minha água,
o eterno retorno a Kairouan. Quem te fez azul:
porta, janela, arcada, passeio simétrico do branco?
Quem fez de Kairouan o céu do meio dia? E contudo terra
onde um alfaiate cose a noite junto à porta. Contudo
todas as cores e os gatos vasculhando o lixo. Latas,
e pequenas caixas nas prateleiras junto à coca cola.
Bato à tua porta para que a casa se recolha
antes de me acolher. Camas onde nos sentamos
para beber o segredo do vinho enquanto as nossas mãos
se encontram num só prato. Molhamos o pão e a boca
entre o “ka” e o “da” dos palradores da noite e é com palavras
que embalamos a Medina deserta a esta hora.
E cada dia o céu se faz madeira de porta,
cimento de molduras e as sete curvas da ruela
que os guias impingem aos turistas antes dos dinares.
Marabout, deixa-me soletrar o nome do teu santo.
Mesquita, deixa-me ficar nos arredores do nada
onde tem morado a Palestina e diz-me quanta poeira
terei de comer, quanto azul verter para que tenhas casa.
E digo eu que a minha casa está vazia, a mesa apenas mesa
e o prato irrepartido. Que o céu e o mar se não fazem corpo
no corpo da cidade. Que há uma explicação
para as nuvens que não é a poeira dos meus passos.
Mas o azul é vermelho na tua língua onde a palavra
nem sequer é casa. As grades ardem dentro das janelas,
dentro dos pulmões irrespiráveis que te sofrem. Palestina,
os meus pés hão-de soletrar o teu solo como a minha boca
soletra Kairouan, o corpo do céu nas tuas casas. Afasto-me
como o gato que desliza sobre o muro, o avião que me traz
de volta na cadeira vaga. Diz que me vês atravessar o Souk,
bater à minha porta na Medina, diz que sou o teu azul na terra
quando adormecemos no poço mais fundo de Kairouan
onde se espelha o céu nas nossas asas. Kairouan une os dois lados
do meu coração como uma palmeira hermafrodita.