Natureza morta com chaminé

Vejo o fumo a sair pela chaminé e um pouco acima
as folhas da árvore tremulam. Ainda resistem,
as árvores têm um fôlego extraordinário. É o meu amigo
que vai subindo e eu aqui em baixo troco recordações avulsas
com dois rapazes do nosso tempo. Lá dentro há uma sala de espera
mas aqui também eu vou fumando a minha vida.
Em Auschwitz não havia sala de espera não havia cadeiras
para a família, nem árvores suficientes para soletrar a dor
nas suas folhas. O meu amigo vai saindo pela chaminé
e eu não sei se as nossas brigas ficam nas cinzas e onde são
guardados os afectos. Este ruído da pá que fere os ouvidos junta
tudo o que poderemos visitar num guarda-jóias para bijuteria.
A verdade que nos resta já vai alta. Só a árvore sabe nas folhas
a corporeidade da matéria que se evola. Aqui em baixo eu fumo.
Directo ao céu vai o corpo do meu amigo subindo pela chaminé.

In Da Alma e dos Espíritos Animais (2001)